A experiência mais recente que compõe o meu portfólio, foi a primeira materialização do conceito ensaiodesi, mesmo antes dele existir…
Trata-se da performance: “Ensaios se Si – o que te incomoda?”.
Minha primeira experiência de concepção e direção de um trabalho tomando como norteadora uma trama conceitual entre a psicanálise, a arte e a filosofia – cada qual com contornos muito próprios, porém, tendo como elemento comum a abordagem do mal estar próprio da condição humana – que me instigaram a uma ampliação para a clínica.
Tal experiência foi fundamental para chegar até aqui.


Cléia Canatto – Psicanalista. O que me move são os afetos tecidos pela arte, psicanálise e filosofia. Estes são os pilares que me possibilitam acessar e expressar a minha subjetividade e ser fiel a minha singularidade.
Vivo intensamente por dentro sem deixar de permanecer atenta ao que está a minha volta. A minha conexão com a vida é a partir da construção de laços profundos.
A tríade arte-psicanálise-filosofia me norteia e está no centro de minha experiência. Ela determina minhas escolhas, fundamenta meus atos e me autoriza a me ensaiar na vida sustentada pelo desejo. É por ensaiar-me que chego ao meu estilo e assim revelo-me nas buscas incessantes de contornar a falta que me constitui.
Qual a minha concepção de clínica?
A concepção de clínica que me orienta nesses vinte anos de percurso com a psicanálise parte da noção de aposta, pois ela reflete as possibilidades de se ensaiar na vida.
A partir desse entendimento, considero o sofrimento psíquico em dimensões amplas, tanto a partir das especificidades que marcam a constituição de cada sujeito, quanto das vicissitudes de suas demandas em contextos de segregação, exclusão e violência. Portanto, nessa concepção tem lugar a articulação do singular do sujeito no laço social. A consideração pela dimensão sociopolítica do sofrimento, amplia o campo da escuta e intervenção para práticas não convencionais.
Em cada um dos elementos da tríade que me norteia encontro formas de manter a aposta e o ensaiar-se.Encontro na filosofia uma sustentação para o não saber, a despretensão na obtenção de respostas e a urgência na intensificação de perguntas. Na psicanálise, a constatação da determinância do inconsciente no movimento do sujeito dividido, na travessia pelo desejo e no desafio que consiste o atravessamento de seus fantasmas. Na arte, as infinitas possibilidades de representar o irrepresentável, de construção e desconstrução permanente de si.
A partir dessa concepção, aposto num trabalho na direção de que são imprescindíveis os ensaios para a vida e de tomá-la como o mais desafia-dor-ensaio que a dor-de-existir nos impõe.

O que é preciso?
É preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar um currículo.
O currículo tem que ser curto
mesmo que a vida seja longa.
Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
Trocam-se as paisagens pelos endereços
e a memória vacilante pelas datas imóveis.
De todos os amores basta o casamento,
e dos filhos só os nascidos.
Melhor quem te conhece do que o teu conhecido.
Viagens só se for para fora.
Associações a quê, mas sem por quê.
Distinções sem a razão.
Escreva como se nunca falasse consigo (…).
Poema “Escrevendo um Currículo”, de Wislawa Szymborska
O que é preciso para me encontrar?
Basta falar comigo…
Quando busco conhecer a trajetória de alguém que cogito para escutar o sofrimento, a minha atenção flutua, os meus ouvidos se abrem, os meus olhos se fixam. E a partir do que ouço, do que vejo, do que sinto, e de muito do que me escapa, me pergunto:
1) suponho nessa pessoa um saber?
2) Que tipo de saber?
Tomo o saber da psicanálise como norteador, naquilo que o saber porta de mais singular, a escuta do inconsciente a partir da suposição de saber num Outro, o que lhe confere a posição de sujeito suposto saber. Assim é considerado aquele que reconheço como portando um saber sobre o meu-mal estar e, portanto, confiro a ele um lugar para me escutar.
Na psicanálise o saber tem conotação ampla e encontra eco no poema de Szymborska à medida que não são somente os saberes formais, as titulações, as filiações que dizem da trajetória de um sujeito, mas predominantemente a sua condição reflexiva. Saber que se revela no modo como o sujeito se posiciona diante da vida, no que sente, no que pensa, no que fala, no que realiza. Sobretudo, implica em não ceder ao desejo ampliando o campo da falta, o que definitivamente define e distingue uma pessoa.
De que tipo de saber se trata?
Tenho como referência a distinção entre os saberes referencial e textual. O primeiro é considerado aquele obtido através de um conhecimento acabado, generalizante, amparado em teorias encontradas nos livros. Já o saber textual é construído através da análise do discurso, revelando a verdade do inconsciente de cada um. É, portanto, um saber singular, genuíno, um saber inconsciente que cada um tem em si. Por isso, tomo o saber da psicanálise como norteador, naquilo que o saber porta de mais singular do sujeito. O instrumento que utilizo para acessar esse saber é a escuta do inconsciente.
Como acessar esse saber singular?
Mas para que esse movimento de acessar o saber singular do sujeito possa funcionar, existe uma condição. A suposição de saber. Ela dá suporte a cada um dos envolvidos no processo analítico: a psicanalista e aquele/aquela que me procura. Como psicanalista, suponho que há em cada um que me procura um saber inconsciente que precisa ser acessado. Naqueles que me procuram para serem ouvidos, é importante, senão imprescindível, que haja uma suposição de saber em mim. De que alguma maneira tenho um saber sobre o sofrimento e a partir disso é possivel se abrir, falar de si e contar com a minha escuta.

Portfólio

Produções e parcerias

ensaiodesi = nomeação + marca + timbre + cor = Estilo

Um ensino digno de Freud só se produzirá pela via
mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura.
Essa via é a única formação que podemos transmitir àqueles que nos seguem,
ela se chama: um estilo.
Jacques Lacan em “A psicanálise e seu ensino”
ensaiodesi é um conceito criado a partir de vivências, reflexões e elaborações construídas e sustentadas ao longo de minha experiência na psicanálise, articulada com a arte e com a filosofia.
O conceito de conceito
A criação de um conceito nesse contexto é inspirada na concepção que Gilles Deleuze faz a partir de Nietzsche. Para Deleuze, conceito é um produto de uma construção em movimento, fruto do vivido. Deste modo, essa construção está intimamente relacionada com a minha passagem pelo divã, ao modo como fui me constituindo psicanalista e ao meu estilo.
Conceitos são considerados acontecimentos que surgem e se desenvolvem a partir das relações com a realidade, ampliando percepções e experimentações no mundo. É quando passam a não ser apenas instrumentos de conhecimento, mas também de criação. São ferramentas para ampliar o pensar e a experimentação da realidade. Deleuze afirma que a filosofia é uma forma de criação, e que os conceitos são os seus materiais.
O conceito de ensaio
Tomo o ensaio também como gênero textual, dando lugar para a subjetividade, a expressão singular, a experiência. É uma via norteadora do estar no mundo. Portanto: ensaio, experiência, estilo são elementos fundamentais da minha proposta.
ensaiodesi é uma concepção de clínica que opera com a escuta do sofrimento psíquico causado pelo clássico conflito entre as forças pulsionais e as exigências da cultura.
Diante disso, o que é possível a cada sujeito, singularmente, a partir da escuta do inconsciente, no trabalho de criação de si e de modos de viver alinhados ao seu desejo?
Existem modos de lidar com a falta e com a impossibilidade
A psicanálise nos ensina que dada a impossibilidade de satisfação total diante da falta que nos é constituinte, a angústia irrompe. E ainda que a falta nos impulsione, a realidade incontestável também se impõe, pois o objeto de satisfação será sempre inalcançável. O compositor Zeca Baleiro na música “O desejo” descreve bem a falta:
(…) sua vida devasta (…)
(…) e pra dor que rói a carne tesa sob a pele fina
não há um só remédio em toda medicina (…).
Essa realidade impõe a todo sujeito buscar meios para contorná-la, para lidar com o sofrimento próprio da condição humana. A Análise é uma das possibilidades de apostar numa experiência absolutamente singular na busca de lidar com a falta.
As possibilidades do ensaiodesi
A religião, a ciência e a arte são apontadas pela psicanálise como possibilidades de amparo frente a dor de existir. ensaiodesi propõe as artes!
A arte que entendo significar escutar um outro que se dispõe a se revelar no que carrega de mais íntimo: a arte da psicanálise!
A arte que considero representar a possibilidade de uma aproximação não mais com os oráculos de sabedoria da filosofia, mas com a potência da filosofia para nos ajudar a viver melhor: a arte da filosofia!
A arte que me constitui desde há muito tempo, a qual me apresentou a psicanálise e a filosofia.


Como relaciono psicanálise, arte e filosofia?
O trabalho de Análise proposto consiste numa escuta psicanalítica de orientação freudo-lacaniana, servindo-se da filosofia, especialmente a partir de Friedrich Nietzsche e Michel Foucault, e da arte contemporânea, privilegiando as artes plásticas e a música. Todas essas referências me são caras na sustentação da premissa da vida como obra de arte.
A premissa que encontro em Nietzsche compreende a plena afirmação e valoração da vida. Implica na relevância conferida à criação e à significação da vida, o que impõe uma postura ativa diante da árdua-libertadora-infindável tarefa de afirmar a existência, desenvolver recursos subjetivos para a criação de si para “tornar-se quem realmente se é”, como diz o poeta Píndaro.
Em Foucault, destaco a concepção de vida como obra de arte. Ela está relacionada com a ética e com o cuidado de si. É uma postura determinante para a construção de uma condição autônoma de caminhar pela vida. É quando a clássica busca pelo autoconhecimento se amplia assumindo forma de ato: o ato de cuidar-se. Trata-se de atos de apropriação da própria experiência que conferem ao sujeito a responsabilidade pela sua existência.
O lugar da arte contemporânea na minha proposta reflete tanto da possibilidade de aproximação com o ensaiodesi, quanto da arte se revelar um campo de possibilidades para o ensaiar-se.
Qual a relação da psicanálise com o ensaio e com a arte?
Destaco algumas das marcas da arte e do ensaio que são necessárias para um processo de análise como ensaiodesi:
- a abertura e liberdade de experimentação, tomadas como condição para a criação, abertura para as vivências que potencializem experiências subjetivas impulsionadoras do ensaiar-se, do construir-se;
- o caráter instigante, reflexivo, questionador do vivido a partir do desejo de saber sobre uma realidade e da responsabilidade sobre ela;
- o questionamento da noção de um sujeito acabado abre espaço para a concepção de sujeito em devir, caracterizado por estar em permanente transformação, a partir da experiência e das forças que atuam sobre ele;
- a desconstrução de concepções fixas de identidade e o encorajamento das possibilidades de mudança e de criação presentes em todo sujeito e ao seu redor;
- a relevância da relação com o Outro, sendo reafirmada tanto na experiência de constituição de si quanto no trabalho de Análise;
- a predominância do conceito sobre a técnica. O conceito de experiência ganha relevância por determinar as bases de sustentação da proposta ao estar para além de técnicas. Compreende uma experiência estética mais ampla;
- abertura à diversidade de estilos. A construção de um estilo é noção central deste trabalho. Lacan se ocupou desse conceito e, na sua formulação final, associa o estilo diretamente ao objeto a, objeto causa de desejo.


O que é um estilo?
O estilo se constitui numa invenção singular na passagem de Analisante a Analista, em decorrência do atravessamento do fantasma de cada um. Assim o estilo é singular, único, genuíno. O que se transmite no estilo é algo da enunciação do sujeito. Portanto, na psicanálise o estilo é considerado a via de expressão da verdade subjetiva e singular.
ensaiodesi é fruto de um estilo ou o estilo é fruto do ensaio de si? Respondo que ambos andam juntos e estão interconectados. Potencialmente, o ensaiodesi oportuniza um espaço e um tempo para a experiência de construção/expressão de um estilo. Um estilo de se estar no mundo ao encarnar o paradoxo de submetimento à castração e ser impulsionado pelo desejo de conexão com a potência de vida que está em todo sujeito.
Um convite-aposta
Nessa concepção será bem vindo todo aquele que desejar mergulhar numa experiência de escutar-se e cuidar-se, a partir de uma vivência singular e acompanhado para construir, encarnar, escrever o seu próprio ensaiodesi. Construir, afirmar, expressar, partilhar o próprio estilo.
Os pré-requisitos são:
- portar um sofrimento,
- ter abertura para se interrogar sobre a sua participação nesse sofrimento,
- atribuir a um Outro um saber para juntos apostarem na potência de um trabalho analítico.
O aceite ao convite representa a possibilidade de aposta numa experiência subjetiva que potencialmente mobiliza os sentidos, amplia o autoconhecimento, não sem um inevitável e fundamental estranhamento e convoca ao cuidado de si.

Fontes consultadas:
- A psicanálise e seu ensino (1957), de Jacques Lacan. O texto integra os Escritos, do mesmo autor. Tradução de Vera Ribeiro. Jorge Zahar Editor, 1998.
- A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento, de Miriam D. Rosa. Editora Escuta/Facesp, 2016.
- Dicionário Nietzsche, organizado por Grupo de Estudos Nietzsche (GEN). Edições Loyola, 2016.
- História da sexualidade 3 – O cuidado de si, de Michel Foucault. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Edições Graal, 1985.
- Introdução à filosofia de Nietzsche, de Amauri Ferreira. Editora: Yellow Cat Books, 2010.
- Nietzsche: Civilização e Cultura, de Carlos A. R. de Moura. Editora Martins Fontes 2019.
- Nietzsche e a filosofia, de Gilles Deleuze. Editora Rio, 1976.
- O mal-estar na cultura e outros escritos, de Sigmund Freud. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Editora Autêntica, 2020.
- O que é a Filosofia?, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Editora 34, 2010.
- Site de produção de conteúdo independente sobre Filosofia: https://razaoinadequada.com/



Objeto-encomenda
“Objeto-limiar.
Não pertence nem à função nem à forma.
Curvas que se dobram para dentro,
como se cada volta interrogasse o que há antes da abertura.
Simula o orgânico, mas é um artifício disciplinado:
construído para tocar o que ainda não tem nome.
Também não indica caminho.
Não promete passagem.
Mas oferece chance”.
(Kenzo Shibata)
ensaiodesi é um conceito fruto das minhas experiências singulares, marcadas pela presença dos tantos outros que me constituem em tempos e espaços os mais variados.
Isso se deu a partir da comunhão de visões, da composição de desejos, da complementação de habilidades e competências e, especialmente, da identificação de afinidades no campo da ética e da estética.
O designer de joias contemporâneas Kenzo Shibata me foi apresentado por meio de uma exposição, através de suas criações. Kenzo, aqui, amplia sua arte para além da criação de joias, abrindo-se ao desafio de esculpir em metais, intrigantes objetos-encomenda.
O processo começa, inicialmente, com palavras-conceito que lanço — e que ele transforma em fiéis norteadoras poéticas de suas criações — as quais encarnam, simbolicamente, conceitos da psicanálise que desejo referenciar por meio da arte.
A arte de Kenzo o apresenta de forma mais fidedigna do que eu poderia fazê-lo.
Conheça mais sobre o artista aqui.
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